segunda-feira, 1 de abril de 2013

A imagem da prostituta no cinema brasileiro contemporâneo

Umberlândia Cabral




A adaptação do livro O Doce Veneno do Escorpião, de Raquel Pacheco – que conta histórias de sua vida como garota de programa, quando usava o pseudônimo de Bruna Surfistinha – foi levado às telas de cinema em 2011. A cada momento surgiam novidades sobre quem seria a atriz escolhida para interpretar a protagonista, quem mais faria parte do elenco, como a história de Raquel seria contada no filme etc.
Quando o filme finalmente estreou, pudemos conferir em salas de cinema comerciais de todo o Brasil a história de Raquel (interpretada por Deborah Secco), filha adotiva de uma família classe média paulistana que resolveu se rebelar e se tornar garota de programa. O que a leva a tomar essa decisão no filme é o clima sempre tenso dentro de casa, o tratamento que ela recebe lá e o bullying do qual a protagonista é vítima na escola. Acompanhamos, então, a jornada de Raquel para se tornar Bruna – de patinho feio no colégio à prostituta de luxo. Na cena em que a personagem foge de casa para procurar um bordel, temos o acompanhamento de uma música dramática e as expressões faciais da atriz apontam um descontentamento que nos indica a vida de sofrimento que a jovem iria levar dali por diante.
O que podemos acompanhar durante o filme é uma constante preocupação de justificar a escolha de Raquel em se tonar prostituta e de mostrar a prostituição como algo sujo, feio e imoral. Na única cena em que Bruna Surfistinha gosta de fazer o programa com um cliente, interpretado por Juliano Cazarré, ela desiste de cobrar – como se isso fizesse parte de um código de ética das garotas de programa. Ela nunca pode gostar. No entanto, sabemos que a própria Raquel Pacheco nunca se arrependeu de se prostituir e gostava disso. Em uma entrevista ao programa De frente com Gabi (disponível aqui), a hoje escritora revela o porquê dessa decisão: “Eu uni o útil ao agradável. (...) Eu queria ganhar dinheiro e eu gostava de fazer sexo. Então eu uni um ao outro”. Nada, portanto, que justifique a versão de coitadinha que Raquel ganhou no filme. A protagonista é dona do seu corpo e naturalmente pode usá-lo da maneira que quiser. Isso parece que não ficou claro para a produção do longa-metragem, dirigido por Marcus Baldini. Como o filme é uma adaptação da autobiografia de Raquel, a história de como ela tomou a decisão de se prostituir e maneira que a prostituição é levada às telas de cinema é uma questão importante.
Outro filme que procura mostrar esse “coitadismo” por parte das garotas de programa é Jogo Subterrâneo, filme brasileiro de 2005, dirigido por Roberto Gervitz e baseado em um conto de Julio Cortázar. O filme conta a história de Martin (Felipe Camargo), um pianista que cria um jogo próprio para encontrar a mulher da sua vida. Todos os dias ele entra em um vagão do metrô, escolhe uma mulher e torce para que ela siga o mesmo caminho que ele. Se isso ocorrer, ele tenta se aproximar. Ao observar Ana (Maria Luisa Mendonça) no vagão, ele abandona as regras do jogo e se aproxima dela, mesmo que ela não tenha seguido o mesmo destino que o seu.
A relação de Martin e Ana se torna cercada de muito mistério, que um mantém para o outro. Ela esconde dele que é prostituta e faz de tudo, desde que aparece no filme, para sair dessa vida. Na tela, já conhecemos Ana como garota de programa de luxo, agenciada pela personagem de Maitê Proença. E também não fica claro como ela resolveu seguir essa profissão, que tanto causa repulsa nela. Em vários momentos do filme, o perigo de exercer a profissão é mostrado em cena, o que também acontece em Bruna Surfistinha.
Em Estomâgo, filme de 2007, que retrata a história do nordestino Raimundo Nonato (João Miguel) indo para a cidade grande com a esperança de ter uma vida melhor, a imagem da prostituta também é associada a uma coisa suja e vulgar. Na cidade grande, Nonato conhece a prostituta Íria (Fabiúla Nascimento) e se apaixona por ela. Íria é uma garota de programa de rua, que expõe o corpo para os clientes nas avenidas da cidade (o que diverge das outras prostitutas citadas nesse texto). Outro ponto que a diferencia de Ana e Bruna, é a explícita falta de educação formal da personagem, o que dá a impressão de que Íria entrou na profissão por falta de oportunidades melhores. O filme dá a entender que a personagem não ganha muito dinheiro com a prostituição e mesmo assim fica claro que ela não pretende sair da carreira, quando Nonato a oferece essa opção. Podemos entender então que Íria está na profissão porque gosta ou tem objetivos maiores que um possível casamento com o protagonista do filme.
Podemos observar, assim, que nos três filmes citados aqui, a prostituta é abordada com aquela personagem da música “Eu vou tirar você desse lugar”(disponível aqui), de Odair José. Mesmo que a personagem não queira sair dessa profissão, como é o caso de Íria, há de aparecer um Nonato para fazer a proposta de transformá-la em uma mulher de “vida digna”. O que dá para notar é um moralismo exposto no cinema brasileiro de que a mulher jamais pode ser protagonista ou heroína de uma história, se gostar de se prostituir. E se ela fizer isso, pode ser punida (como podemos notar pelo desfecho de Estômago. Sem spoiler!). O que quero mostrar aqui é como a imagem que temos da prostituta nas nossas telas de cinema ainda é unilateral. É óbvio que a garota de programa que quer sair dessa vida existe e deve ser mostrada, mas também deve haver um espaço para as que têm orgulho dessa profissão, que representa bem a tão lucrativa indústria do sexo.


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