domingo, 7 de abril de 2013

Duas semanas com Samuka


Bruna Fernandes

Bilhete deixado pelo criminoso na cena de um homicídio.
(tradução: Roubou, morreu. E aí, Samuka, , é a lei do cão)

Quem nunca assistiu ao programa Correio Verdade e, mesmo assim, tem uma opinião nada boa sobre ele, pode continuar assim. Não perca seu tempo tentando seguir a ideia de que não se deve criticar o que não se conhece, ou procurando dar um motivo razoável para o que sai dali. Depois de uma experiência de duas semanas acompanhando o
dito jornal, afirmo que os trechos de vídeo e as opiniões que circulam pela internet e pelos demais meios são pura realidade, mas causam apenas um choque mínimo quando comparados ao programa inteiro.

Assistir a uma hora e meia desse espetáculo “da verdade” todos esses dias, em plena hora do almoço, complicou bastante a minha digestão. Entretanto, foi útil para confirmar que o cardápio servido por Samuka Duarte é repleto de sangue, choro, merchan e muita “criatividade” – além de erros grotescos de português e linguagem chula. Nesse período, foram noticiados quarenta homicídios/tentativas, nove assaltos, treze apreensões de drogas e ainda alguns acidentes e prisões. Cada notícia é acompanhada de comentários do apresentador, intercalados com falas e sons repetitivos (e irritantes) reproduzidos por quem comanda o áudio do programa: “dá pra repetir?”, “aonde?”, “Samuka, eu amo ele”, “Samuka, boy doido”, etc.
Samuka bebendo coco, ao vivo, durante o programa
Só o primeiro bloco dura, em média, quarenta minutos; essa é quase a duração total de outros jornais locais. Imagina quantas matérias de importância social poderiam ser colocadas nesse tempo! Mas não, em vez disso, o espaço é usado para dar voz aos bandidos (um deles até cantou um rap autoral em homenagem a Samuka) e aos repórteres, que (ab)usam do microfone para espetacularizar os crimes e o sofrimento alheio. E não é só o microfone que sofre, pois, para cativar a audiência e tornar a matéria mais “interessante”, os transmissores das notícias utilizam também outros artefatos. O “deu águia”, ou Marcos Antônio, por exemplo, é muito inovador em suas matérias. Sobre um acidente envolvendo um caminhão de bebidas, o repórter não hesitou em terminar a notícia segurando uma garrafa de cerveja e fingindo (ou não) estar bebendo seu conteúdo. Já a “dama de ferro” do Sertão, Jaceline Marques, começou uma matéria andando de moto, enquanto falava sobre um mototaxista traficante. Depois, para completar, o jornal volta para o estúdio e o telespectador se depara com o apresentador usando um capacete e se perguntando “será que vou pegar piolho?” Todas essas palhaçadas se repetem dia após dia, cada vez mais inusitadas. Sem esquecer que até crianças são convidadas a assistir o jornal, porque, segundo Samuka, elas pedem aos pais para assistir.
O famoso “môfi”, Emerson Machado, é mais “contido” (ou menos criativo), mas tem destaque por conseguir furos através de seus amigos de casa policiais. Para mim, o cúmulo foi quando ele, durante a gravação de uma matéria sobre um homicídio no São José, na capital, entrou na frente de uma ambulância do Samu, que corria de sirene ligada, para perguntar qual era a ocorrência, e ainda bateu um papinho com o socorrista.
Por essas e outras, durante a tortura experiência eu ficava, de certa forma, aliviada quando chegava a hora do merchandising. Ocupando boa parte do tempo do jornal e aparecendo entre uma morte e outra, anunciantes de tv por assinatura, loja de departamento, clínica odontológica, produtos farmacêuticos e até de faculdade, conquistam seus clientes samukianos diariamente. Afinal, se o Samuka (que tem a certeza de que é juiz, policial, advogado, psicólogo, professor...) deita no travesseiro desta loja, toma o suco pronto daquela outra, ajeita os dentes ali e aprova aquele vaso sanitário, quem sou eu, humilde ser atrás da tv, para fazer o contrário?


Veja algumas transcrições do programa feitas pelo Ministério Público: http://www.prpb.mpf.gov.br/DegravaesTVCorreioMJ.pdf

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