domingo, 7 de abril de 2013

O Nordeste por dentro: Visão de Arraes


Juliana Freire

Por vezes acanhado, mas sempre em busca de ser cabra valente. Ele é conhecedor da natureza, sabe driblar as inconstâncias do santo protetor de sua terra, não perde o sorriso “nem que dê a mulesta”, além de ser contador de histórias arretadas, da melhor qualidade. Espontâneo, prestativo, religioso, mas também pecador. Ninguém é de ferro e o santo é de barro. Dividido entre a pureza divina e a promiscuidade, a retidão e o pecado. Este é o nordestino representado por Guel Arraes no cinema brasileiro na última década.

Embasados em clássicos literários adaptados ao contexto nordestino, “ O Auto da Compadecida” (2000), “Lisbela e o Prisioneiro” (2003) e “Romance” (2008), retratam uma região castigada pela própria natureza- só se for “in natura” política- em que a pobreza material é inerente àquela terra, mas não ao seu espírito. Nas versões cangaceiras do diretor pernambucano, o cenário é sempre uma cidade do interior, em que tudo que alude à modernidade, como a tecnologia, ainda é embrionário. Os personagens também legitimam o ar provinciano da localidade. Ao coronel, o privilégio de mandar e até matar na região sem punição, ao Padre, a benção de guiar, aconselhar e civilizar a sociedade, à mulher, ou a castidade ou a promiscuidade, nunca os dois juntos. Aos demais, a pobreza, a simplicidade e muitas histórias engraçadas e aumentadas a contar.

Guel Arraes conserva em seus filmes a essência do interior nordestino. Como que sem pretensão de criticar de maneira agressiva a desigualdade social e realçar a luta pela sobrevivência de um povo sofrido, o diretor aborda a temática com humor, abarcando o ponto de vista do próprio nordestino, que não se vê como um coitado, muito menos como um afortunado. O povo representado ri da própria desgraça, assim como na realidade, e sabe que no “Sul” a vida é diferente- apesar da estrutura de divisão de riquezas in loco acontecer de maneira similar- mas não se “aperreia” com isso não. “Não sei. Só sei que foi assim!”

Cena do filme "O Auto da Compadecida"
No “O Auto da Compadecida”, filme embasado no romance homônimo de Ariano Suassuna, João Grilo (Matheus Nachtergaele) e Chicó (Selton Mello) andam por Cabaceiras atrás de dinheiro fácil, até que se indispõem com Severino de Aracaju (Marco Nanini), cangaceiro da cidade. O enredo é marcado pela tragicomédia que envolve a vida daqueles dois personagens. Interessante atentar que, apesar de qualquer maldade ou malandragem realizada na trama, todos se curvam ao divino na hora do juízo final e externam reverência e respeito extremo às figuras de Jesus e Maria.

Independente da índole e dos pecados realizados, os personagens são crédulos na compaixão divina. A Mãe, o Filho e o rival, o Diabo, dividem a cena numa estrutura de disputa entre o bem e o mal, assim como ocorre dentro da consciência dos próprios personagens.

Em “Lisbela e o Prisioneiro”, uma adaptação da peça de novo homônima de Osmar Lins, também ocorre um conflito que parece ser típico da região retratada no filme: Pecado versus Pureza. O enredo narra a estória de uma mocinha casta (Débora Falabella) que ia casar-se com um malandro nordestino de sotaque carioca (Bruno Garcia). Enquanto isso, Leleu (Selton Melo), cabra desenrolado, se envolve com uma mulher casada, que se apaixona pelo galanteador. A estória ganha outro rumo, quando Leleu e Lisbela se conhecem e se apaixonam, deixando para trás o malandro e a adúltera. A castidade da mocinha é retratada como símbolo de qualidade feminina no Nordeste. E o bem (a pureza e o amor) mais uma vez vence o mal (o pecado).

Cena do filme "Lisbela e o Prisioneiro"
Não fugindo do previsto, “Romance” acontece sobre o mesmo viés: o maniqueísmo, o amor contra a trapaça. Naquele é utilizado o recurso da metalinguagem, em que o enredo do filme é a própria produção fílmica. Interessante que isto se desdobra como se Guel Arraes revelasse como pensara suas produções anteriores, já que segue na vida real o mesmo roteiro. Assim como aconteceu em “O Auto da Compadecida” e “Lisbela e o Prisioneiro”, “Romance” conta a história de uma adaptação televisiva da peça europeia do século XII, “Tristão e Isolda”, inserida no contexto do sertão nordestino.

O filme narra a estória de um romance representado entre os atores Pedro (Wagner Moura) e Ana (Letícia Sabatella) que se confunde com a o enredo amoroso vivido em cena. Vladimir Brichta, por sua vez, interpreta Orlando, um ator sulista que se passa por nordestino para ganhar a vaga no elenco da série em produção e confunde Ana quanto ao sentimento dela pelo diretor Pedro.

 Cena do filme "Romance"
Para representar o nordestino, Orlando exibe-se como conhecedor da natureza local, carrega um ar de timidez no semblante quando o assunto é amor, além de expressar características admiradas na região como valentia, honestidade e modéstia. Em contrapartida, o sulista, ao trapacear a produção do filme, revela crítica contundente a atitudes opostas aos valores regionais. No desfecho, Ana descobre a mentira inventada por Orlando e rende-se por completo ao seu amor, Pedro. Final feliz para os pombinhos novamente.

Nos três filmes de Arraes citados, os personagens assumem perfis bem firmados e valores solidificados que permeiam o imaginário social nordestino: o valente, a mocinha, a adúltera, o padre, o esperto, o coronel. Assim como ocorre na realidade, no interior nordestino esses estereótipos são ainda bem definidos e a crença em virtudes humanas também é bastante presente. Por isso, o conflito entre o correto e o errado é tão evidenciado na representação da região. O amor dando certo revela também a queda de Arraes por finais românticos. O que é externado no próprio “Romance”, em que o diretor representado na trama se angustia para elaborar um final de sucesso aos mocinhos.

Quase que fazendo uma trilogia do Nordeste brasileiro, Arraes representa em “O Auto da Compadecida”, “Lisbela e o Prisioneiro” e de maneira menos significante, mas ainda assim enriquecedora, em “Romance”, a Região em sua identidade cultural, em sua terra infértil, em seu jeito peculiar de viver. Envolvida por tons ácidos, as comédias possibilitam refletir sobre aquela realidade, desde a concentração de rendas que é a causa da pobreza local até o agraciamento de se viver numa região que conserva a simplicidade, o repente, o sotaque, a conversa frente a frente, os valores.

O nordestino representado pela ótica de Arraes aparece nos filmes como sujeito espontâneo e simples. Acredito que esse é o principal estereótipo que o diretor quer infiltrar do seu povo no cenário nacional, haja vista que a beleza do Nordeste encontra-se justamente quando seu ator principal assume-se como tal e não sente vergonha de seu “eu”. É bonito ser nordestino, mesmo com a pobreza da terra do interior, mesmo sem luxo ou água encanada. Feio é quem lhe tenta roubar a alegria, quem tenta lhe trapacear. Essa é a ideia. Pelo menos aqui o bem vence o mal. Final feliz para a Região.





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